Humanos são animais com defeito natural, não fazem sentido! Como um ser vivo triste, poderia ser causa de alegria? Pra mim não faz sentido, mas para o circo que comprou Golias, o meu circo, fazia todo o sentido do mundo. Na semana de sua chegada só se falava disso, ele seria a nova grande estrela, mas não antes de passar pelo domador...
A origem da palavra "domador" vem do Latim domare, significa "amansar, dominar, domesticar", mas eu só vejo dor em domador, a origem pra mim é essa, e o que isso significa pra mim é que ele vai tirar toda a esperança que restou!
Eu nasci no circo, e existe sempre quem pensa que isso foi um sonho, mas eu odiava! Eu me perguntava como era a vida das crianças que iam com seus pais ao circo, encantadas com nossos números, sempre cheias de mimos, olhos brilhando! Sabe, as pessoas normais que frequentam escolas, assistem televisão, trabalham em bancos e escritórios, elas não imaginam, elas não fazem ideia de que a magia não existe para quem está nos bastidores! Restaurantes, cinemas, circos, teatros, gente que faz a magia acontecer, as vezes esfria e quando tem a oportunidade de estar do outro lado, vira critico, técnico, não vê mais graça em ver magia, só quer fazer magia! E apesar da liberdade (que parece até obvia quando se pensa no povo do circo), a vida sempre foi dura, com rotinas intensas de trabalho, dos mais novos aos mais velhos. Eu passava doze horas por dia trabalhando minhas habilidades! No começo eu levava como brincadeira, horas de contorcionismo, horas de malabarismo, ajudar a alimentar animais, limpar jaulas, mas em certa idade deixou de parecer brincadeira. Acho até que eu nasci diferente das outras crianças do circo, ninguém parecia ter as minhas duvidas profundas, apenas viviam os dias, aceitavam a nossa realidade. Mas eu sempre que podia agarrava com unhas e dentes informações e conhecimentos sobre a vida fora do circo. Os anos passaram e eu vi gente fugindo com o circo, mas nunca vi ninguém fugir do circo (talvez uma ou outra criança com medo de palhaço), e eu, o que me faltava era coragem para largar a trupe.
Naquela época eu tinha doze anos, já era contorcionista, malabarista e participava de um numero com Clóvis o Palhaço, era minha responsabilidade também alimentar alguns dos animais, atividade que eu faria de bom grado, se não implicasse em receber ordens do domador!
O domador! Ele não tinha coração, não tinha amor em bicho, e no que considero bicho, considero também todo o resto da humanidade. Acredito que ele se achava mesmo um herói, um Tarzan, um... sei lá o que aquele homem imbecil se achava, o fato é que ele era um açougueiro, um carniceiro! Tao logo que botou os olhos em Golias, se odiaram! O leão fraco, oprimido na gaiola que era do seu tamanho, rugiu, mostrou os dentes, deu uma bela mijada e a qualquer pessoa que tentasse chegar perto, ele mostrava logo que estava disposto a arrancar cada membro do corpo do aventurado! O domador gritava, estalava o chicote, se exibia para todo mundo, e enquanto forçava uma gargalhada grave dizia: "Nós vamos ver quem pode mais, quando eu arrancar esses dentes, nós vamos ver quem é o mais macho". Meu coração era apertado, essas cenas que eu já virá tanto deveriam te-lo endurecido, mas por algum motivo me deixavam cada vez mais triste.. Acho até que se naquela época tivesse acesso, teriam me levado ao psiquiatra e me diagnosticado em quadro depressivo. Infelizmente, se existisse um psiquiatra na trupe daquele circo, teriam diagnosticado também que Clóvis, o palhaço se encontrava em um quadro muito pior, estava sofrendo de um quadro severo de coração partido!
Estávamos em uma cidade grande, a poucos quilômetros do porto, já haviam montado a tenda e naquele dia eu acordei com o barulho da fanfarra ensaiando. Os últimos detalhes do picadeiro eram ajustados e seria um dia qualquer de apresentação do circo na cidade, mas não foi! De longe se via as faíscas das facas sendo amoladas, martelos, alicates gigantescos, artigos que mais pareciam ser de tortura estavam sendo preparados... o leão perderia seus dentes em breve!
Engoli a seco, perturbado fui ao encontro de Clóvis começar nossa rotina, nós pouco nos falávamos. Se eu era triste, o palhaço nos últimos tempos nem se fala, mas por algum motivo deixei escapar: "Tenho pena do leão, ninguém deveria perder os dentes assim, parece dolorido. As vezes o circo é um lugar cruel!". Clóvis ignorou, mas passado algum tempo, o palhaço me assustou com a resposta que eu já nem esperava: "Nós mudamos a natureza das coisas para que elas não nos ataquem... Você tem razão, é crueldade, é errado!"
Clóvis era mais um, entre tantos outros animais cujo a besta havia arrancado na força a esperança, estava domesticado e mortalmente ferido! Inesperadamente, Clóvis agarrou sua maleta e disparou para fora da lona, já saindo pela parte entre aberta disse: "Vem!" e eu fui sem saber!
Clóvis se dirigiu até o trailer e escritório de Rubens Gordo, dono do circo. Sem frear um passo, agarrou um molho de chaves pela janela e ainda andando, jogou-as para mim e disse: "As chaves, abrem as jaulas, faça o que tem que fazer e corra!". Eu não sabia o que eu tinha que fazer, não é como se ele tivesse conversado mais que o trivial comigo e agora de repente estava tomado pela certeza que eu sabia o que eu tinha que fazer? Não tive muito tempo para pensar, mas sabia que ele tinha me dado as chaves para que eu libertasse Golias, e com as chaves nas mãos eu poderia, se quisesse, libertar todos os animais! Mas e as pessoas? Com Golias e todos seus dentes, nenhum animal ou pessoa teria chance de sobreviver!
Foi o que eu consegui pensar, pois em outro segundo o palhaço Clóvis já se encontrava de frente a Javier, o domador e gritava a todos, tomando toda a atenção:
-"Você quis colocar fogo no circo Javier, mas quando colocar fogo no circo, tenha certeza que você não vai estar dentro para queimar com ele!"
Dito isso, Clóvis retirou um revolver de sua maleta e atirou em Javier! O panico se instalou, eu estava exatamente na mesma posição, assisti o corre-corre, paralisado e vi quando Clóvis saiu correndo com um galão de gasolina. Algo em mim disse que era a hora!

No meio da multidão, alguém puxou meu braço me dando um tranco e me colocando para correr junto com fluxo de gente! Meus pais corriam com meus irmãos mais novos, além de um cachorro que vinha sendo arrastado na coleira! Parcialmente aliviado, eu corri, corri até meu pai julgar que estávamos em segurança e quando me dei conta, estávamos no porto! Nos abraçamos e tivemos poucos segundos de alivio interrompido pelos gritos que tornaram a aumentar em nossa direção.
Foi quando eu o vi, com sua juba chamuscada balançando, o leão vinha com todos os seus dentes a mostra. Golias deu um salto em direção ao oceano, e minha felicidade em ter salvo a esperança do leão, foi tomada pela duvida: Leões sabem nadar?
Por sorte alguns marinheiros em navios atracados ao porto pensaram o mesmo, capturaram o leão com uma rede, um verdadeiro ato de coragem, pois mesmo preso em uma rede de pesca, Golias ainda tentava atacar. Depois disso vocês podem imaginar, a policia foi investigar os fatos, e com tantas irregularidades não foi surpresa que o circo tenha ido a falência. Javier morreu, demorei anos para entender que Clóvis e Javier eram na verdade amantes. Clóvis também morreu, foi carbonizado, e saiu no jornal como assassino e unica vitima do incêndio provocou. Parece que ele não seguiu o próprio conselho, ficou preso dentro do circo enquanto ele pegava fogo.
Rubens Gordo vendeu o que sobrou do circo, e os animais que estavam ilegalmente em sua posse foram levados pelo governo, a ultima vez que vi Golias, ele estava sendo levado para uma reserva, e meu encantamento foi em saber que existiam mais pessoas como eu, que preferiam os animais livres. Golias deu sorte em sua jornada, dei uma ultima olhada para ele, seu destino viria a ser também o meu futuro, decidi que era a minha hora de dizer adeus ao circo.