domingo, 18 de setembro de 2016

casal



ela está confusa, é uma tremenda perda de tempo pensar em tudo isso, até porque, se pensar bem vai ver que caminhar em direção ao conforto faz dela uma piada pronta, faz dela aquilo que ela temia tanto ser; a patologia viva e resistente de seus pais.
Lá vai ela, 21:41, noite de domingo, um mendigo grita ao outro que vai mata-lo e não se entende bem os motivos pois os gritos são abafados pela escola de samba vai-vai, que ensaia para o carnaval. Carrinhos de sucata estacionados a esquerda, ela passa no meio, a sua direita corpos deitados, o companheiro a atravessa "Que cara louco". Esquiva da miséria, mas a consciência alfineta na barriga, uma azia querendo abrir um buraco no estômago, enquanto tantos ali vivendo a fome, sua barriga cheia desfilava e ninguém além dela pensava ou ligava. Comeu por três ou mais e por isso faltava comida para três ou dez alguéns no mundo. Mas é questão de saber viver e vender, eles não souberam e a fome é um dos preços que se paga por não se adaptar a selvageria moderna.
Ele caminha confiante, o destino que o desafiava a ser humilde o fez mais grosso e arrogante, um monstro fino de belo trato, acredita ter ganhado o jogo, pois está disposto a se vender. No bolso do casaco dois segredos para felicidade, dinheiro e fidelidade, manter as aparências custa caro e ele sabia o quanto pagava por todas aquelas imagens. Ligados como que através de uma corrente elétrica invisível, não conseguiam se livrar da rotina corrosiva, ela estava confusa, mas não sabia pensar por si só, e tentar era uma tremenda perda de tempo, tudo parecia no lugar, então porque não estava em paz? Olhando bem era fácil perceber a rachadura no seu mundo, autoengano, preferia afundar em seu frágil barco de omissão, acreditar que se esse mundo acabasse não existiria outro para viver. Ele oferece um presente, o segredo é tratá-la muito bem para que nunca de fato ela se permita perceber. Ela deu a ele uma filha, ele pede que ela sempre amarre uma fita branca na cabeça da criança, assim quando ele chega e a vê brincando, sente imensa paz. Talvez seja isso a felicidade, não temos culpa que nem todos possam experimentar... Mas nem mesmo a bela decoração, o carro, a vida aparentemente perfeita consegue esconder que debaixo de cada molécula comprada, a estrutura é feita de mentiras bem intencionadas. Sim.. boa intenção, motivada do mais puro egoísmo.
De noite ela sonha com um casarão onde ela sobe as escadas, a iluminação é artificial, um sonho lúcido, uma mulher grande de cabelos de fogo a recebe, o ar sugere bruxaria, e na trepidação do pensamento inconsciente a cena avança, já está na cama com uma antiga colega de escola, seminuas:
“o que estamos fazendo aqui?”
“vão nos filmar!”
Não sente repulsa, nem remorso, elas vão fazer pelo dinheiro e o sistema social não é assim? Jamais faça algo em que você é bom de graça! A mente procura rapidamente razões justas para socialmente ser sujo ter o sexo observado, qual era a maldade em ter seu gozo registrado? Mas aos poucos a exposição lhe invadia, a vergonha do que iriam falar,  sua reputação, sua moral em jogo, nada poderia valer mais, desiste. Se levanta para procurar suas roupas e na trepidação do pensamento inconsciente a cena avança, ainda no casarão, se ve em uma sala, o chão de madeira é pintado de branco, sete homens de meia idade, cabelos grisalhos, carecas, cachimbos, charutos, conhaques, bigodes. A cena é limpa, nada ali sugere corrupção ou sujeira. Da esquerda pra direita o segundo se levanta, envolve-a em seus braços, são os investidores de obras pornográficas. “Eu esperava que você resolvesse ficar” e envolvida no abraço de um completo estranho, desperta em sua cama sentindo-se vampirizada.
Ela está confusa, é uma tremenda perda de tempo pensar em tudo isso, até porque, pensando bem ela não se sentia de fato imoral, quem eram os sujos? A mulher que a aliciou? Os investidores de perversão? E ela vitima da situação? Não, ela não se incomodava em ser tocada, desejada, não se importava com as câmeras, no seu intimo vibrava com a possibilidade de ser vista, desejada, causar ereções, formigamentos e aceitaria o dinheiro se tudo fosse real. E ele? Ele estava impregnado nela e dela, já tinham se corrompido muito antes, se vendido, vendiam ilusão, e ele a comprava como ninguém, o tempo todo. No café da manhã ele era um vencedor, um vendedor que tinha tudo nas mãos, mas aos poucos ela rachava, apesar dos esforços dele em mantê-la anestesiada, ela havia cruzado a linha em um lugar onde não precisava e nem podia mais se enganar, ela habitava agora sua própria consciência.  

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